JAIME PACHECO


Cá fica, na íntegra, uma entrevista que fiz recentemente a Jaime Pacheco, para o Record, antes da sua partida para a Arábia Saudita.

- O que é que o leva a aceitar este desafio das arábias?
JAIME PACHECO- Quem sabe eu não posso ajudar a minha equipa ou o futebol das arábias se conseguir introduzir o meu cunho? Muito honestamente, nunca gostei de cuspir no prato da sopa onde me alimentei. Gostava de continuar por aqui mas tenho que sair. Desde 2002 que tenho treinado equipas que nunca me permitiram ter sucesso. Antes do mais, porque foram equipas que nunca pagaram direito...
- Esteve no Maiorca...
JP- Sim, mas apanhei o clube na transição de ser vendido, como foi. Foi vendido o clube e os jogadores. No último ano em que estive em Guimarães, apesar de termos feito uma grande campanha a nível da UEFA, fomos o único clube nessa época que passou à fase de grupos. Nunca tive a possibilidade, neste período, de construr um plantel. À excepção de três ou quatro clubes, há muito amadorismo no futebol em Portugal. Não estava habituado a isto. No FC Porto e no Boavista trabalhei com grandes organizações.
- Nunca foi convidado para treinar FC Porto, Benfica ou Sporting?
JP - Fui convidado por Benfica e Sporting.
- E?
JP - As pessoas não me conhecem. A ideia que as pessoas têm de mim é a do Jaime Pacheco que vêem nos jogos transmitidos pela TV. Tenho princípios que se calhar escasseiam. Se o Boavista me dava condições para fazer óptimas épocas, se me apoiava em tudo...iam ser questões puramente monetários a levar-me a abandonar tudo isto? Que líder era eu para abandonar os jogadores?
- Outro fazem-no sem pensar duas vezes...
JP - Se calhar fazem bem. Mas não ficava bem comigo e quero ser assim até ao fim da minha vida. Se andasse atrás de dinheiro...
- Ou será que não foi para Benfica e Sporting por sentir que aí é muito difícil superar a hegemonia do FC Porto?
JP - Não. A pressão e a dificuldade são para os pobres que todos os dias têm de ter arte e engenho para se sustentarem. Isso é que é. Pressão nos clubes ricos que têm muito dinheiro e bons jogadores?! Difícil é ser treinador como eu fui muitos anos e como foi o Lázaro o ano passado. Isso é que é complicado. Tomara eu treinar um grande mas tem de ser de uma forma clara e transparente e respeitando valores.
"Beleneses: houve reuniões
entre a nova direcção e os capitães"

- O que é que sentiu quando o Belenenses desceu de divisão?
JP - Quando coleccionava os cromos do Quaresma, do Mourinho, do Godinho, do Pietra...lembro-me do Belenenses como um clube com história, uma camisola bonita, um grande estádio. Na época era um clube muito grande. Hoje é um clube adiado. É uma grande propriedade mas loteada, isto é, com muitas quintinhas lá dentro. Enquanto não acabarem com isso o Belenenses vai sentir muitas dificuldades. Repare, no único campo que tinha para treinar aí trabalhavam todos os dias duzentos e tal miúdos. Muitas vezes íamos começar a treinar e o homem da relva ia começar a cortar a relva que eu mandara cortar no dia anterior. E o dono da relva, que já lá está há muitos anos, dizia-me ‘eu é que sei, eu é que percebo’. Depois, também fomos dirigidos por uma comissão administrativa composta por pessoas sérias e honradas que não podiam estar ali de uma forma mais presente. Para além disso, dispersaram-se face às eleições, que abriram fissuras e rupturas no plantel.
- O plantel era fraco?
JP - O plantel tinha bons jogadores que podiam ter produzido mais mas tínhamos muitos jogadores com as mesmas características: o José Pedro, o Wender, o Silas, o Saulo, o Marcelo, o Roncatto dentro dos mesmos padrões. Tinha jogadores que não sabiam tocar bombo. Com a bola, jogavam todos jogavam bem. Sem ela, acabou! A nossa equipa era muito frágil a defender. Melhorou com as entradas do Ávalos e do Diakité mas era pouco para quem viveu sempre no fundo da tabela. E quando a equipa estava a organizar-se aconteceram as eleições. Para além disso, desde o princípio de Fevereiro deixamos de receber.
- O que aconteceu à equipa para, num momento crucial, ser goleada em casa pelo Braga?
JP - Foi algo que coincidiu com a entrada da nova direcção. Não queria falar muito sobre isto.
- Pareceu uma situação muito anormal...
JP - Eu no próprio jogo senti isso. Antes do jogo já tinha percebido algo. Mas era impotente para travar a avalancha. Em Portugal acontece muitas vezes vermos as pessoas a procurarem defender os seus interesses em detrimento das instituições. Soube que houve reuniões entre os três capitães e a direcção e ninguém soube os conteúdos dessas reuniões. Reconheço que fiz e o que podia, levava muitas expectativas... Recordo que uma DAS pessoas de uma das listas que não ganhou fez sobre mim afirmações completamente difamatórias. Mas porquê? Porque essa lista convidou-me para ser o treinador deles e eu disse sempre que não e a partir de aí fui o mais visado. São pessoas que não têm princípios. Temo muito pelo futuro do Belenenses, se o clube continuar assim. É um clube com grande potencial também na formação, como o provam as apostas que eu fiz no André Almeida, no Fred, no Pelé, no Tiago Almeida. É óbvio que não agradei a todos mas senti que nem todos fizeram o mesmo. As eleições foram a derrocada.
- Mas o Belenenses acabou por permanecer na I Divisão...
JP - Mais uma vez. Se bem se lembram, há três anos, numa equipa com o Meyong, o Ruben Amorim e outros o Belenenses também desceu. Portanto, o problema ali é de fundo.

"Se calhar não devia ter
sido campeão no Boavista..."

- O FC Porto tem tudo para ser de novo penta?
JP - Olhemos para a última época. Entre os três grandes, qual a equipa na qual os três avançados mais trabalhavam em termos defensivos? Depois se vê quem ganha... Mas vai ser um ano mais difícil. As saídas sobretudo do Lucho e do Lisandro vão fazer mossa. Será um campeonato mais apertado mas acredito no FC Porto campeão no final da época. O ano passado enganei-me em pouco ao vaticinar o FC Porto e. 1.º, o Sporting em 2.º, o Braga em 3.º e o Benfica em 4.º.
- Acredita que Jesus será capaz de ressuscitar o Benfica?
JP - O Jesus não pensará como eu. Eu não sou invejoso. Muitas vezes fazem-se críticas que não são mais que invejas e oxalá que os treinadores portugueses tenham sucesso pois já demonstrámos que somos capazes. Acredito que será capaz de fazer muito melhor trabalho do que fez o Camacho e o Quique Flores.
- Porquê?
JP - Porque é melhor.
- Tem melhores jogadores?
JP - Se calhar há ali alguns jogadores que eu não contratava. Se calhar contratava outros.
- Há algum jogador do Benfica que lhe encha as medidas?
JP - Gosto muito do Cardozo mas precisa de mais tempo de jogo. O grande problema dele é o problema do futebol português: trabalha-se pouco. Ele não aguenta o jogo inteiro. Se trabalhar mais, se calhar vai aguentar 85 minutos e não 65. Gosto muito dele. Também gosto muito do Luisão se ele jogar à sua maneira. É alto, feio, intimida mas tem de jogar simples. Há outros com grande qualidade. Por exemplo, Máxi Rodriguez é um jogador de equipa. O Ruben Amorim é bom jogador mas ainda não é o que se diz.
"Não dava 15 milhões pelo Cissokho"
- E no FC Porto?
JP - Gosto de quase todos mas não dava 15 milhões pelo Cissokho – foi o negócio do século. Gosto do Hulk e do Mariano também.
- Do Mariano?!
JP - Sim, gosto dele. Ele obriga os outros a treinar e a jogar e tem grande velocidade. Entrega-se totalmente e desgasta qualquer equipa. Pode não ter a qualidade dos outros mas é um jogador de quem gosto muito. Gosto de outros ainda, como o Raul Meireles, que era central nos juniores e que pus a jogar nesta posição. É um jogador muito completo e com qualidade de jogo. E temos ainda o Bruno Alves, o jogador que eu designei o melhor jogador do campeonato. É melhor que o Pepe. O pai dele também assustava... Para além disso, continua a ser humilde e nota-se que tem princípios. Foi lançado por um treinador que tem também o cunho de ser exigente: o Co Adriaanse. Foi com ele que o Quaresma fez a sua melhor época. Os treinadores têm de ser exigentes.
- Está a acusar o toque de ser muitas rotulado como um treinador desse tipo...
JP - Talvez. Muitas vezes quiseram destruir a minha imagem. Não tenho um trajecto imaculado mas se há coisas de que me orgulho é de levar os meus filhos pela mão e nunca me faltarem ao respeito.
- Não acredita nos mestres da táctica?
JP - Acredito. Sempre existiram. Laboratório sempre houve, aliado à componente da paixão, do espírito de sacríficio, da entreajuda. Fomos habituados assim. Eu tive o privilégio de estar numa escola onde os treinadores formatavam assim as equipas. O que se deve ao sr. Pedroto. Não há bons jogadores com maus treinadores. Quando jogava no Aliados de Lordelo fazíamos crosses e eu ganhava sempre. Sentia-me preparado para jogar ao mais alto nível mas quando passei para o FC Porto na pré-temporada fazia parte do pelotão dos últimos. Afinal, estava muito longe daquilo que pensava... Senti algumas dificuldades e sofri muito. No final do ano já ia na frente do pelotão. E no ano seguinte, e digo isto com vaidade, ninguém me apanhava! Todas as corridas e todos os jogos eram os últimos da minha vida. Os jogadores que comigo a treinador fizeram isso, todos eles singraram. É um sofrimento que dá prazer porque no final de cada treino e de cada jogo temos resultados. Há jogadores que não vão mais longe porque nunca tiveram esses valores.
"Se há coisa que agradeço
foi ter passado pelo FC Porto"
- Anda há muitos anos no futebol e já se deve ter apercebido de muitos caldinhos. O que vê hoje é muito diferente do que via no passado?
JP - Há coisas iguais. Só que para uns abrem os olhos bem para trás e para outros fazem de conta que não vêem. Agradeço a todos os clubes por onde passei e não me arrependo de nunca ter entrado em qualquer caldinho.
- Como explica o facto de ter feito quase toda a sua carreira de jogador no FC Porto e de haver alguma clivagem entre si e este clube e vice-versa?
JP- A culpa não é minha. Jogo nos veteranos do FC Porto e às vezes sou proibido de jogar sem saber porquê...e depois lá me levantam o castigo. Se há coisas que eu agradeço é a vida desportiva que tive no FC Porto e muito do que sou deve-se a eles. Foi uma felicidade ter passado por lá. Têm de entender que me dedico aos clubes que represento sempre da mesma maneira.
- Acha que algumas pessoas não lhe perdoam o facto de ter sido campeão no Boavista?
JP - É verdade. Se calhar para a minha carreira aqui nunca devia ter sido campeão no Boavista. Mas orgulho-me muito disso. Fomos campeões uma vez e fomos duas vezes segundos. Ao contrário do que acontece noutros países, aqui não deixam voar quem tem asas. Não me importo de estar a pagar essa factura. No Boavista deram-me tudo para eu poder desenvolver o meu trabalho com tranquilidade.
- Está a falar do Paulo Bento também...
JP - O Paulo Bento está a fazer um trabalho notável mas se não fosse o Soares Franco já tinha saído há muito tempo, que é um grande exemplo do que deviam ser os presidentes em Portugal.
- O Sporting não está a ficar para trás?
JP - Estou convencido que se lhe derem tanto dinheiro como dão ao Benfica e ao FC Porto... Há quantos anos é que o Derlei jogou no FC Porto? O ano passado ainda era uma mais valia no Sporting. Não sou advogado de defesa do Paulo Bento mas tem levado sempre as segundas escolhas.
- E quem é que destaca na equipa do Sporting?
JP - O Liedson, É o exemplo do grande profissional. Trabalha muito. E tem outra coisa: qualquer adversário que lhe ponha a mão no ombro ou na cabeça é logo sacudido. Ele não quer nada com o adversário – para ele são todos inimigos. Depois do jogo até pode dormir com o adversário mas em jogo são todos inimigos. É uma coisa que a mim me mata: ver, no final do jogo, os jogadores a darem beijos uns aos outros. Se calhar sou antiquado mas não é essa a minha filosofia.

"Pimenta Machado, Valentim e João Loureiro fazem falta"

- O que tem mudado em termos de dirigismo no futebol português?
JP – Não sei. O que sei é que pessoas como Pimenta Machado e Valentim Loureiro, e o próprio João Loureiro, fazem muita falta ao futebol português.
- Está a falar de pessoas com processos na justiça...
JP- Sim, mas o facto é que o que provam e nada é a mesma coisa. É só show-off. Eram dirigentes que conseguiam pressionar o Governo, que é hoje o maior inimigo dos clubes. Tinham capacidade. O futebol é porta-estandarte de Portugal e é maltratado pelo Governo.
- Cada vez são menos raros nos grandes clubes jogadores que, como você, se afirmaram na primeira equipa depois de saltarem da formação. Porquê?
JP - O que vejo é que no meu tempo os treinadores da formação não eram remunerados e nós trabalhámos com condições mínimas, ou seja, com bolas remendadas e em campos pouco praticáveis. No entanto, os três grandes, e sobretudo o FC Porto, tinham sempre 3, 4, 5 6, 7 ou 8 jogadores da formação na equipa principal. O que aconteceu até há 4 ou 5 anos atrás. E porquê? Porque os treinadores eram o Feliciano, o Inácio, o Rodolfo ou o João Pinto, pessoas que tinham assimilados os valores do clubes. Era a mística da formação transmitida à equipa principal e decisiva nos momentos-chave das épocas. Porque estamos a falar de jogadores com paixão pelo clube. Hoje, temos equipas a trabalharem com cinco ou seis campos relvados, com power points, com treinadores estrangeiros...mas onde está a paixão e a mística, o rigor e a disciplina?
- Esses valores perderam-se?
JP - Muito.


"A qualidade de um carro está na sua cilindrada..."

- Aliás, uma das críticas que lhe fazem a si tem a ver com o facto de ter um treinador muito rigoroso, disciplinador, que dá imensas cargas de trabalho...
JP - Graças a Deus! Sou criticado por gostar que os jogadores sejam melhores, se valorizem e cheguem ao mais alto nível. Sou criticado por pôr as minhas equipas a jogar ao mesmo nível físico das melhores. Gosto de ter equipas organizadas e com ritmo competitivo. Muitas vezes, a qualidade de um carro está na cilindrada que tem. Ainda acredito que duas sessões de trabalho por dia, durante determinadas fases da temporada, são muito importantes. Não sou, claramente, um treinador facilitista, gosto de controlar o peso, o equipamento...
- Vai ao ponto de controlar o tipo de calçado?
JP - Não me revejo num atleta que usa pitons de borracha durante o Inverno. E aí sou rigoroso. O que costumo dizer aos jogadores é isto: ‘Preferem ver um adversário de piton de alumínio ou borracha?’ E eles respondem sempre que o preferem ver de borracha. Com alumínio o adversário está mais seguro e intimida. Gosto que os jogadores tenham uma aplicação e uma paixão pelo trabalho.
- O Cristiano Ronaldo, apesar de ser um galáctico e de ter uma vida social preenchida durante as férias, é um jogador que se enquadra nos seus parâmetros?
JP - Muito honestamente, não é apenas pelo físico que ele tem e pelo que dizem os seus treinadores. Mas para jogar como joga as coisas não podem cair do céu. É um jogador que se cuida muito e que trabalha muito. Quanto às férias, tem todo o direito do Mundo a fazer o que quiser porque durante o resto do ano é um grande profissional. Portanto, nesse período deita tudo para fora tanto mais que é jovem e não é aos 60 anos que vai tirar esses prazeres da vida. O sucesso dele está na fórmula talento aliado ao trabalho. Já vi muitos jogadores talentosos a passarem ao lado de uma grande carreira... Ao contrário, outros, com menos talento, fazem carreiras sensacionais, como, por exemplo, o Gattuso no Milan, o Bonini na Juventus, o André no FC Porto, o Essien no Chelsea, o Petit no Boavista e no Benfica... As melhores equipas do mundo têm sempre este tipo de jogador que nem sempre agrada muito mas que equilibra as equipas. É como numa empresa qualquer que tem aquele funcionário que faz tudo e que quando ele falha toda a gente sente a sua falta.
- Vê algum jogador português no activo com essas características?
JP - (longa pausa) Estou a ter dificuldades... Basta ver a selecção, que adaptou o Pepe à posição de trinco. Se calhar dá jeito ao seleccionador mas também é difícil arranjar alguém para aquela posição. Há uns anos abundavam jogadores para essa posição. Há falta de valores em Portugal e isto deve-se muito ao que está a acontecer neste momento nos sectores de formação onde os jogadores parece que estão numa passagem de modelos.