A entrevista que fiz a Jaime Pacheco, para o Record, aqui na íntegra.
-Tendo você o currículo que se conhece, não estranha que quando chega a hora, por exemplo, de preencher a vaga de treinador num grande clube nacional ou na selecção o seu nome nunca seja citado ou cogitado?
JAIME PACHECO – Não, as pessoas falam... Repare numa coisa: eu não estou ligado a empresários, não tenho negócios escuros com empresários. Não sou daqueles treinadores que são colocados aqui ou acolá e depois tem de meter 4 ou 5 jogadores daquele empresário no clube. Nunca fiz isso.
– Mas já foi aliciado para tal?
JP – Tantas vezes! Sei que fico a perder mas não pactuo com posições que não sirvam objectivamente os interesses do clubes. E os presidentes também sabem! Só que nesse jogo eu não entro. Costumo dizer que todos nós temos um preço, mas não sei qual é o limite do meu. Quero que os meus filhos tenham orgulho no pai, nos seus princípios e valores. Sinto-me como alguns artistas que ficam incomodados por existirem, por exemplo, tantos cançonetistas pimpas. A verdade é esta: há muitos treinadores pimbas. Aqueles que falam de coisas que sempre existiram dando-lhe nomes como "transição", "linhas", "basculação"...essas coisas, sei que é modernização mas são coisas que não funcionam.
– Os empresários fazem-lhe alergia?
JP – Não, dou-me bem com eles todos. Podem ter um papel construtivo. Só que os presidentes às vezes acreditam mais nos empresários que nos treinadores, o que é mau. Dou-me bem com todos mas não quero nada com nenhum. Porque é que tenho de me ligar a alguém se me posso ligar a todos?
– Não é um complexo de inferioridade seu?
- Não, pois não tenho receio de ombrear com os melhores. Na sociedade em que vivemos é preciso é falar, não interessa o que se faz. Em Portugal nem sempre se trabalha bem.
– Mas Portugal tem excelente treinadores espalhados pelo Mundo, de Manuel José a José Mourinho...
– Nós temos excelentes treinadores. Mas em Portugal é difícil ser-se treinador. E aqui para se ganhar tem de se treinar o FC Porto. Basta olhar para a história. Os treinadores portugueses são bons mas hoje dá-se pouca responsabilidade aos atletas...
– Onde quer chegar?
JP – Por exemplo, faz-me espécie ver algumas pessoas a falar contra o Paulo Bento. Ele tem, com certeza, um regulamento. As regras devem ser cumpridas, os valores da instituição devem ser sagrados. E aqui sempre que acontece qualquer coisa de negativo, lá tem de ser o treinador a assumir essa responsabilidade. Porque quando ganham são todos a ganhar. O lugar de treinador é o lugar mais fragilizado do futebol português. Até pela calendarização dos jogos, que é uma aberração, como esta diminuição para 16 equipas, as paragens constantes...tudo coisas elaboradas por pessoas que se calhão não estão por dentro do fenómeno desportivo. Repare-se no que acontece na 2.ª B, que é de bradar aos céus. Não posso pactuar com isto mas há treinadores que o fazem, que vivem à base das cunhas, dos favores, dos empresários...
– Quantos são?
JP – São muitos, muitos. Uns já morreram e alguns vão morrer também. Muitos.
"Jogador do FC Porto tentou agredir-me"
– Disse que para se ganhar em Portugal é preciso treinar o FC Porto. Não sente que queimou essa possibilidade quando um dia, como treinador adversário, entrou na sala de Imprensa das Antas e falou sempre de pé porque se recusou a prestar vassalagem? Isso não o marcou?
JP – Tudo me tem marcado ao longo da vida mas acho que mais pela positiva que pela negativa. Houve casos extremos mas sempre fui vertical. Tenho um processo de vida um bocado desconhecido do grande público pois cheguei ao FC Porto à experiência vindo do Aliados de Lordelo. Não vim com uma mala de cartão como a Linda de Suza mas quase. E fiz uma carreira sempre à custa de muito esforço e trabalho. Quanto a esse caso, sou uma pessoa educada, muito educada, ciente das minhas responsabilidades. Fui jogar às Antas e, no túnel, passaram por mim colaboradores do FC Porto e nem boa-noite, nem boa-tarde. E durante o jogo houve um jogador do FC Porto que me insultou, ao ponto de me querer agredir. Toda a gente viu! Senti que foi um caso estudado, planeado, e senti-me ofendido na condição de treinador e de ex-jogador do FC Porto. Teria bastado alguém dizer 'Pacheco, não ligues' e jamais eu teria dito o que disse. Senti-me revoltado sobretudo com o silêncio dos responsáveis do clube.
– Não está arrependido?
JP – Não, hoje faria a mesma coisa.
– O que se passou, afinal, para abandonar o Boavista e para ainda continuar por cá depois de ter recebido tantos convites de clubes estrangeiros?
JP – Entre Junho e Julho, tive alguns convites a nível nacional e internacional (da Ucrânia ao Egipto)mas alguns dos projectos não vinham ao encontro do que eu acho desejável. Senti que merecia mais. E nesse entretanto havia a esperança de que a situação do Boavista não tivesse o desfecho que teve. Entendi que devia esperar, que não devia fugir como os ratos num naufrágio. Moralmente tinha obrigação de continuar e, sinceramente, não acreditava que o Boavista pudesse descer...
– Convictamente?
– Sim. Ainda hoje me faz espécie a matéria de facto que acusa o Boavista. Ando no futebol há muitos anos e há coisas semelhantes, até mais mais graves, que acontecem com outros clubes. Se o Boavista descesse por não pagar ao fisco ou aos seus profissionais, isso eu até admitia.
"João Loureiro era um presidente muito bom"
– João Loureiro não era o único presidente que falava com árbitros, pois não?
JP – Claro que não! Acontece em todo o lado e muitas vezes à vista de toda a gente. Tendo culpas no cartório e tendo que assumir responsabilidades, a situação devia ter sido igual para todos!
– Face a todos os problemas financeiros e a nível judicial, qual era o seu projecto para o Boavista mesmo na II Liga?
JP – Sempre disse ao Álvaro Braga Júnior e ao Manuel Barbosa: se fizerem um plantel razoável eu fico cá.R – Mas não ficou...JP – Senti que o Boavista não tinha argumentos desportivos para tentar subir de divisão. A equipa precisava de experiência. E não me conseguiram dar essas garantias. Pelo menos conseguimos uma coisa: o Boavista era um comboio que estava parado e conseguimos pô-lo a andar.
– Conhece o clube como poucos e talvez seja capaz de explicar este quase mistério: como é que o Boavista derrapa de campeão nacional em 2001 para equipa a lutar pela sobrevivência em 2008?
JP – O Boavista teve anos dourados que foram fruto de jogadores alguns deles hoje nas melhores equipas do Mundo e também do próprio dr. João Loureiro. Hoje é muito fácil criticá-lo. É uma pessoa que tem defeitos mas que também fez muitas coisas boas. A partir de 2003, foi quando a verdadeira crise se instalou no clube. Recordo particularmente o momento em que fomos eliminados, mal, pelo Auxerre na pré-eliminatória da Champions. A equipa foi perdendo qualidade no colectivo. Mesmo assim, fomos à meia-final da Taça UEFA nessa época. Quando defrontámos o Celtic estava tudo já muito difícil de gerir: havia 3 ou 4 meses de salários em atraso! As obras do estádio estavam a levar aquilo que era para nós. A grande derrapagem do Boavista deve-se à construção do novo estádio e é preciso que se diga que todos os clubes tiveram ajuda e o Boavista não.
– João Loureiro era um bom presidente?
JP – Era muito bom presidente. Uma qualidade de um bom presidente é estar sempre ao lado do seu treinador e essa é, quanto a mim, uma das grandes vantagens do FC Porto ao longo dos últimos anos. João Loureiro era assim. Mas houve uma altura em que se descontrolou, talvez devido aos problemas financeiros, e começou a falar como se percebesse muito de futebol. Todos sofremos muitos e os jogadores foram todos uns heróis nesse tempo e os problemas acabavam sempre nos treinadores: eu, o Sanchez ou o Carlos Brito.
– Recorda-se de algumas situação crítica relacionada c om estes problemas financeiras?
JP – Houve muitas, muitas. Mas recordo especialmente o jogo com o Celtic, aqui no Bessa. Perdemos 1-0 e os jogadores no final, com o desgosto, atiraram-se para o chão, desabafaram, mostraram grande revolta interior, pois sentiram que se tivessem sido mais apoiados tinham conseguido ir à final, o que seria...sobrenatural!
"Tudo o que fiz pelo Boavista nunca foi por dinheiro"
– É mesmo um dos principais credores do Boavista?
JP – Essa era a única coisa de que não queria falar. Porque há muitos anos, desde 2000 e troca o passo, que dificilmente recebia uma época inteira. Na última época, estive quase um ano sem receber. Vivo de dinheiro e não posso sustentar a minha família se não o tiver. Não é tanto isso que me preocupa mas a falta de gratidão de algumas pessoas. Algumas porque são ignorantes e outras porque estrategicamente lhes dá jeito dizer determinadas coisas. Tdo o que fiz ao serviço do Boavista nunca foi por dinheiro. A paixão que tenho por funcionários e adeptos que estiveram sempre comigo conta mais que o dinheiro. Sempre demonstrei a minha seriedade, o meu profissionalismo e a minha dedicação ao clube.
-...onde foi campeão nacional!
JP – Mas não quero viver sempre disso. Pus muitas vezes a minha posição de treinador para contornar as dificuldades do clube, sempre coloquei os seus interesses à frente. Nem sempre fui perfeito, é verdade, pois também fui afectado pela instabilidade. Cheguei a perguntar ao presidente 'quanto dinheiro quer para eu poder sair?'Fecho aqui um ciclo...
– Boavista nunca mais?
JP – Isso não se pode dizer porque o Boavista estará sempre no meu coração.
- Bosingwa foi um dos jogadores que lançou e sobre o qual disse que tanto podia jogar num grande europeu como no Pasteleira...
JP -O Zé tem dois corações, um motor para arrancar e outro para regressar. Sempre falámos muitos mas houve uma altura em que chegámos aos limites devido à sua desconcentração nos aspectos do dia a dia. Disse-lhe na altura que ele era um jogador que acabaria a jogar no Real Madrid ou no Pasteleira. Porquê? Porque senti que tinha condições excepcionais. Reconhecia-lhe qualidades que mais ninguém tinha. Ele era médio-centro, trinco, e eu senti que ele não tinha capacidade para jogar naquela posição. Começou, por isso, a jogar a extremo direito, com estas instruções: 'Diz ao defesa esquerdo que quando lhe meteres a bola à frente ele nunca te apanha nunca, vou-te matar'. Recordo-me uma vez, ainda a propósito da sua ingenuidade, que recebemos o Sporting, ele estava a jogar a lateral direito e entrou o Cristiano Ronaldo, e ele nos últimos minutos com a preocupão de pedir ao Ronaldo a camisola desconcentrou-se e o...Ronaldo fez o 2-1. O Ronaldo passou por ele e fez golo. Nem sei que ficou com a camisola dele...
- Raul Meireles foi outra descoberta...
- O Raul era defesa-central nos juniores, com aquele físico! Eu pu-lo sempre a médio ou lateral. Ele, o Zé e outros são as minhas bandeiras como treinador e sinto-me sempre felicíssimo quando os vejo jogar. Sinto que tive algumas responsabilidades naquilo que de bom lhes aconteceu e o mérito é sobretudo deles, que foram bons alunos.
[uma pausa para me mostrar um SMS de Jorge Ribeiro a agradecer-lhe tudo o que fez por ele na última época]
"Gostava que o meu filho tivesse o carácter do Ricardo"
– Não sente que os treinadores portugueses, sobretudo nas entrelinhas, são muito críticos em relação ao trabalho que Scolari fez na selecção nacional?
– Que não vejam nesta resposta alguma ponta de inveja porque a inveja a mim não me mata e não me paga as contas. Scolari é campeão do mundo, era uma pessoa que tinha currículo... Fez aqui um bom trabalho. Mas acredito que tendo em conta a conjuntura – nomeadamente a organização do Euro 2004 -, um treinador português teria feito igual ou até melhor. Dentro destas condições, que eram fabulosas, ele também foi muito importante. Ó óbvio que não agradou a gregos e troianos. Como português que seu e contribuinte, teria, isso sim, gostado de saber porque razão não convocou Vítor Baía.
– Mas, Jaime, ele apostou no guarda-redes que você lançou...
JP – Exactamente. Se há pessoas que admiro, uma dessas pessoas. Gostava que o meu filho, que tem 12 anos, e joga no Boavista, tivesse o seu carácter. Porque o Ricardo é uma pessoa de valores, um grande profissional. Mas outra coisa é a clareza que os portugueses mereciam no esclarecimento desta opção. Ser treinador da selecção não é a mesma coisa que ser treinador de um clube.
– O campeonato está aí a rolar. Aposta em quem para campeão?
– Não faço esse tipo de apostas, só jogo no euromilhões de vez em quando. Mas dou quatro clubes para lutarem pelo título.
– Quatro?!
JP – Os do costume e o Sp. Braga.
– Está a meter o Sp. Braga nessa guerra mas a equipa não começou bem o campeonato...
JP – Acho que é possível. O Sp. Braga cresceu muitos nos últimos anos, apesar de algumas oscilações e se calhar algumas ingerências que acontecem na aprendizagem. Mas mais importante que ter bons treinadores é ter bons jogadores e o Sp. Braga tem um plantel fabuloso. Não quero com isto criar responsabilidades ao Jesus, estou apenas a fazer a minha análise do plantel, que é o mais equilibrado – tem dois jogadores posição, qual deles o melhor! É, para além disso, um clube bem organizado. Não estou a ver porque não possa lutar pelo título.
– Não mete o V. Guimarães nesta corrida?
JP – Não. O Vitória ficou a perder com a saída do Geromel, do Ghilas e do Alan. Não é muito mas são três jogadores titularíssimos.
– O FC Porto também perdeu o Bosingwa, o Paulo Assunção e o Quaresma...
– Mas não dou tanta desculpa ao FC Porto. Repare no que acontece naqueles jogos de beneficiência com craques de todo o mundo. Os jogadores chegam, equipam-se, entram dentro do campo e jogam muito bem...sem treino, sem nada. Porquê? Porque são bons e ganham muito dinheiro. Ou seja, um jogador de qualidade que ganha milhões, que é internacional, quando chega a um clube já tem de chegar praticamente adaptado. Não é como quando se contrata um jogador no Rebordada para jogar no FC Porto. Não admito comprar um carro por 150 mil euros para depois ter de o aquecer durante 5 minutos antes de arrancar. Um carro desses tem de se chegar e arrancar logo, por isso custa tanto dinheiro. Se não compravamos um Fiat Punto...
– Mal ou bem, o Benfica no nosso futebol é sempre a notícia do dia...
– É uma equipa com bons jogadores mas tem um plantel desequilibrado, sobretudo na defesa. Não percebo como é que um jogador como David Luiz não joga há um ano, como é que não têm um lateral direito de raiz, porque não tem dois jogadores por posição... Quem gasta milhões, tem de se preocupar com isto.
-Tendo você o currículo que se conhece, não estranha que quando chega a hora, por exemplo, de preencher a vaga de treinador num grande clube nacional ou na selecção o seu nome nunca seja citado ou cogitado?
JAIME PACHECO – Não, as pessoas falam... Repare numa coisa: eu não estou ligado a empresários, não tenho negócios escuros com empresários. Não sou daqueles treinadores que são colocados aqui ou acolá e depois tem de meter 4 ou 5 jogadores daquele empresário no clube. Nunca fiz isso.
– Mas já foi aliciado para tal?
JP – Tantas vezes! Sei que fico a perder mas não pactuo com posições que não sirvam objectivamente os interesses do clubes. E os presidentes também sabem! Só que nesse jogo eu não entro. Costumo dizer que todos nós temos um preço, mas não sei qual é o limite do meu. Quero que os meus filhos tenham orgulho no pai, nos seus princípios e valores. Sinto-me como alguns artistas que ficam incomodados por existirem, por exemplo, tantos cançonetistas pimpas. A verdade é esta: há muitos treinadores pimbas. Aqueles que falam de coisas que sempre existiram dando-lhe nomes como "transição", "linhas", "basculação"...essas coisas, sei que é modernização mas são coisas que não funcionam.
– Os empresários fazem-lhe alergia?
JP – Não, dou-me bem com eles todos. Podem ter um papel construtivo. Só que os presidentes às vezes acreditam mais nos empresários que nos treinadores, o que é mau. Dou-me bem com todos mas não quero nada com nenhum. Porque é que tenho de me ligar a alguém se me posso ligar a todos?
– Não é um complexo de inferioridade seu?
- Não, pois não tenho receio de ombrear com os melhores. Na sociedade em que vivemos é preciso é falar, não interessa o que se faz. Em Portugal nem sempre se trabalha bem.
– Mas Portugal tem excelente treinadores espalhados pelo Mundo, de Manuel José a José Mourinho...
– Nós temos excelentes treinadores. Mas em Portugal é difícil ser-se treinador. E aqui para se ganhar tem de se treinar o FC Porto. Basta olhar para a história. Os treinadores portugueses são bons mas hoje dá-se pouca responsabilidade aos atletas...
– Onde quer chegar?
JP – Por exemplo, faz-me espécie ver algumas pessoas a falar contra o Paulo Bento. Ele tem, com certeza, um regulamento. As regras devem ser cumpridas, os valores da instituição devem ser sagrados. E aqui sempre que acontece qualquer coisa de negativo, lá tem de ser o treinador a assumir essa responsabilidade. Porque quando ganham são todos a ganhar. O lugar de treinador é o lugar mais fragilizado do futebol português. Até pela calendarização dos jogos, que é uma aberração, como esta diminuição para 16 equipas, as paragens constantes...tudo coisas elaboradas por pessoas que se calhão não estão por dentro do fenómeno desportivo. Repare-se no que acontece na 2.ª B, que é de bradar aos céus. Não posso pactuar com isto mas há treinadores que o fazem, que vivem à base das cunhas, dos favores, dos empresários...
– Quantos são?
JP – São muitos, muitos. Uns já morreram e alguns vão morrer também. Muitos.
"Jogador do FC Porto tentou agredir-me"
– Disse que para se ganhar em Portugal é preciso treinar o FC Porto. Não sente que queimou essa possibilidade quando um dia, como treinador adversário, entrou na sala de Imprensa das Antas e falou sempre de pé porque se recusou a prestar vassalagem? Isso não o marcou?
JP – Tudo me tem marcado ao longo da vida mas acho que mais pela positiva que pela negativa. Houve casos extremos mas sempre fui vertical. Tenho um processo de vida um bocado desconhecido do grande público pois cheguei ao FC Porto à experiência vindo do Aliados de Lordelo. Não vim com uma mala de cartão como a Linda de Suza mas quase. E fiz uma carreira sempre à custa de muito esforço e trabalho. Quanto a esse caso, sou uma pessoa educada, muito educada, ciente das minhas responsabilidades. Fui jogar às Antas e, no túnel, passaram por mim colaboradores do FC Porto e nem boa-noite, nem boa-tarde. E durante o jogo houve um jogador do FC Porto que me insultou, ao ponto de me querer agredir. Toda a gente viu! Senti que foi um caso estudado, planeado, e senti-me ofendido na condição de treinador e de ex-jogador do FC Porto. Teria bastado alguém dizer 'Pacheco, não ligues' e jamais eu teria dito o que disse. Senti-me revoltado sobretudo com o silêncio dos responsáveis do clube.
– Não está arrependido?
JP – Não, hoje faria a mesma coisa.
– O que se passou, afinal, para abandonar o Boavista e para ainda continuar por cá depois de ter recebido tantos convites de clubes estrangeiros?
JP – Entre Junho e Julho, tive alguns convites a nível nacional e internacional (da Ucrânia ao Egipto)mas alguns dos projectos não vinham ao encontro do que eu acho desejável. Senti que merecia mais. E nesse entretanto havia a esperança de que a situação do Boavista não tivesse o desfecho que teve. Entendi que devia esperar, que não devia fugir como os ratos num naufrágio. Moralmente tinha obrigação de continuar e, sinceramente, não acreditava que o Boavista pudesse descer...
– Convictamente?
– Sim. Ainda hoje me faz espécie a matéria de facto que acusa o Boavista. Ando no futebol há muitos anos e há coisas semelhantes, até mais mais graves, que acontecem com outros clubes. Se o Boavista descesse por não pagar ao fisco ou aos seus profissionais, isso eu até admitia.
"João Loureiro era um presidente muito bom"
– João Loureiro não era o único presidente que falava com árbitros, pois não?
JP – Claro que não! Acontece em todo o lado e muitas vezes à vista de toda a gente. Tendo culpas no cartório e tendo que assumir responsabilidades, a situação devia ter sido igual para todos!
– Face a todos os problemas financeiros e a nível judicial, qual era o seu projecto para o Boavista mesmo na II Liga?
JP – Sempre disse ao Álvaro Braga Júnior e ao Manuel Barbosa: se fizerem um plantel razoável eu fico cá.R – Mas não ficou...JP – Senti que o Boavista não tinha argumentos desportivos para tentar subir de divisão. A equipa precisava de experiência. E não me conseguiram dar essas garantias. Pelo menos conseguimos uma coisa: o Boavista era um comboio que estava parado e conseguimos pô-lo a andar.
– Conhece o clube como poucos e talvez seja capaz de explicar este quase mistério: como é que o Boavista derrapa de campeão nacional em 2001 para equipa a lutar pela sobrevivência em 2008?
JP – O Boavista teve anos dourados que foram fruto de jogadores alguns deles hoje nas melhores equipas do Mundo e também do próprio dr. João Loureiro. Hoje é muito fácil criticá-lo. É uma pessoa que tem defeitos mas que também fez muitas coisas boas. A partir de 2003, foi quando a verdadeira crise se instalou no clube. Recordo particularmente o momento em que fomos eliminados, mal, pelo Auxerre na pré-eliminatória da Champions. A equipa foi perdendo qualidade no colectivo. Mesmo assim, fomos à meia-final da Taça UEFA nessa época. Quando defrontámos o Celtic estava tudo já muito difícil de gerir: havia 3 ou 4 meses de salários em atraso! As obras do estádio estavam a levar aquilo que era para nós. A grande derrapagem do Boavista deve-se à construção do novo estádio e é preciso que se diga que todos os clubes tiveram ajuda e o Boavista não.
– João Loureiro era um bom presidente?
JP – Era muito bom presidente. Uma qualidade de um bom presidente é estar sempre ao lado do seu treinador e essa é, quanto a mim, uma das grandes vantagens do FC Porto ao longo dos últimos anos. João Loureiro era assim. Mas houve uma altura em que se descontrolou, talvez devido aos problemas financeiros, e começou a falar como se percebesse muito de futebol. Todos sofremos muitos e os jogadores foram todos uns heróis nesse tempo e os problemas acabavam sempre nos treinadores: eu, o Sanchez ou o Carlos Brito.
– Recorda-se de algumas situação crítica relacionada c om estes problemas financeiras?
JP – Houve muitas, muitas. Mas recordo especialmente o jogo com o Celtic, aqui no Bessa. Perdemos 1-0 e os jogadores no final, com o desgosto, atiraram-se para o chão, desabafaram, mostraram grande revolta interior, pois sentiram que se tivessem sido mais apoiados tinham conseguido ir à final, o que seria...sobrenatural!
"Tudo o que fiz pelo Boavista nunca foi por dinheiro"
– É mesmo um dos principais credores do Boavista?
JP – Essa era a única coisa de que não queria falar. Porque há muitos anos, desde 2000 e troca o passo, que dificilmente recebia uma época inteira. Na última época, estive quase um ano sem receber. Vivo de dinheiro e não posso sustentar a minha família se não o tiver. Não é tanto isso que me preocupa mas a falta de gratidão de algumas pessoas. Algumas porque são ignorantes e outras porque estrategicamente lhes dá jeito dizer determinadas coisas. Tdo o que fiz ao serviço do Boavista nunca foi por dinheiro. A paixão que tenho por funcionários e adeptos que estiveram sempre comigo conta mais que o dinheiro. Sempre demonstrei a minha seriedade, o meu profissionalismo e a minha dedicação ao clube.
-...onde foi campeão nacional!
JP – Mas não quero viver sempre disso. Pus muitas vezes a minha posição de treinador para contornar as dificuldades do clube, sempre coloquei os seus interesses à frente. Nem sempre fui perfeito, é verdade, pois também fui afectado pela instabilidade. Cheguei a perguntar ao presidente 'quanto dinheiro quer para eu poder sair?'Fecho aqui um ciclo...
– Boavista nunca mais?
JP – Isso não se pode dizer porque o Boavista estará sempre no meu coração.
- Bosingwa foi um dos jogadores que lançou e sobre o qual disse que tanto podia jogar num grande europeu como no Pasteleira...
JP -O Zé tem dois corações, um motor para arrancar e outro para regressar. Sempre falámos muitos mas houve uma altura em que chegámos aos limites devido à sua desconcentração nos aspectos do dia a dia. Disse-lhe na altura que ele era um jogador que acabaria a jogar no Real Madrid ou no Pasteleira. Porquê? Porque senti que tinha condições excepcionais. Reconhecia-lhe qualidades que mais ninguém tinha. Ele era médio-centro, trinco, e eu senti que ele não tinha capacidade para jogar naquela posição. Começou, por isso, a jogar a extremo direito, com estas instruções: 'Diz ao defesa esquerdo que quando lhe meteres a bola à frente ele nunca te apanha nunca, vou-te matar'. Recordo-me uma vez, ainda a propósito da sua ingenuidade, que recebemos o Sporting, ele estava a jogar a lateral direito e entrou o Cristiano Ronaldo, e ele nos últimos minutos com a preocupão de pedir ao Ronaldo a camisola desconcentrou-se e o...Ronaldo fez o 2-1. O Ronaldo passou por ele e fez golo. Nem sei que ficou com a camisola dele...
- Raul Meireles foi outra descoberta...
- O Raul era defesa-central nos juniores, com aquele físico! Eu pu-lo sempre a médio ou lateral. Ele, o Zé e outros são as minhas bandeiras como treinador e sinto-me sempre felicíssimo quando os vejo jogar. Sinto que tive algumas responsabilidades naquilo que de bom lhes aconteceu e o mérito é sobretudo deles, que foram bons alunos.
[uma pausa para me mostrar um SMS de Jorge Ribeiro a agradecer-lhe tudo o que fez por ele na última época]
"Gostava que o meu filho tivesse o carácter do Ricardo"
– Não sente que os treinadores portugueses, sobretudo nas entrelinhas, são muito críticos em relação ao trabalho que Scolari fez na selecção nacional?
– Que não vejam nesta resposta alguma ponta de inveja porque a inveja a mim não me mata e não me paga as contas. Scolari é campeão do mundo, era uma pessoa que tinha currículo... Fez aqui um bom trabalho. Mas acredito que tendo em conta a conjuntura – nomeadamente a organização do Euro 2004 -, um treinador português teria feito igual ou até melhor. Dentro destas condições, que eram fabulosas, ele também foi muito importante. Ó óbvio que não agradou a gregos e troianos. Como português que seu e contribuinte, teria, isso sim, gostado de saber porque razão não convocou Vítor Baía.
– Mas, Jaime, ele apostou no guarda-redes que você lançou...
JP – Exactamente. Se há pessoas que admiro, uma dessas pessoas. Gostava que o meu filho, que tem 12 anos, e joga no Boavista, tivesse o seu carácter. Porque o Ricardo é uma pessoa de valores, um grande profissional. Mas outra coisa é a clareza que os portugueses mereciam no esclarecimento desta opção. Ser treinador da selecção não é a mesma coisa que ser treinador de um clube.
– O campeonato está aí a rolar. Aposta em quem para campeão?
– Não faço esse tipo de apostas, só jogo no euromilhões de vez em quando. Mas dou quatro clubes para lutarem pelo título.
– Quatro?!
JP – Os do costume e o Sp. Braga.
– Está a meter o Sp. Braga nessa guerra mas a equipa não começou bem o campeonato...
JP – Acho que é possível. O Sp. Braga cresceu muitos nos últimos anos, apesar de algumas oscilações e se calhar algumas ingerências que acontecem na aprendizagem. Mas mais importante que ter bons treinadores é ter bons jogadores e o Sp. Braga tem um plantel fabuloso. Não quero com isto criar responsabilidades ao Jesus, estou apenas a fazer a minha análise do plantel, que é o mais equilibrado – tem dois jogadores posição, qual deles o melhor! É, para além disso, um clube bem organizado. Não estou a ver porque não possa lutar pelo título.
– Não mete o V. Guimarães nesta corrida?
JP – Não. O Vitória ficou a perder com a saída do Geromel, do Ghilas e do Alan. Não é muito mas são três jogadores titularíssimos.
– O FC Porto também perdeu o Bosingwa, o Paulo Assunção e o Quaresma...
– Mas não dou tanta desculpa ao FC Porto. Repare no que acontece naqueles jogos de beneficiência com craques de todo o mundo. Os jogadores chegam, equipam-se, entram dentro do campo e jogam muito bem...sem treino, sem nada. Porquê? Porque são bons e ganham muito dinheiro. Ou seja, um jogador de qualidade que ganha milhões, que é internacional, quando chega a um clube já tem de chegar praticamente adaptado. Não é como quando se contrata um jogador no Rebordada para jogar no FC Porto. Não admito comprar um carro por 150 mil euros para depois ter de o aquecer durante 5 minutos antes de arrancar. Um carro desses tem de se chegar e arrancar logo, por isso custa tanto dinheiro. Se não compravamos um Fiat Punto...
– Mal ou bem, o Benfica no nosso futebol é sempre a notícia do dia...
– É uma equipa com bons jogadores mas tem um plantel desequilibrado, sobretudo na defesa. Não percebo como é que um jogador como David Luiz não joga há um ano, como é que não têm um lateral direito de raiz, porque não tem dois jogadores por posição... Quem gasta milhões, tem de se preocupar com isto.