RUI SANTOS "A ABRIR"


Quando o leitor tiver este jornal nas mãos, já se iniciou o campeonato. Pensa que o FC Porto parte melhor posicionado para conquistar o quarto título consecutivo? Que análise faz aos plantéis dos «grandes»?
O FC Porto apresenta-se sempre mais bem posicionado desde que alguns presidentes do Benfica, acolitados por outros dirigentes sem visão nem opinião, deram cabo de um capital imenso de credibilidade de uma das maiores marcas e referências de Portugal. Vale e Azevedo é o bode expiatório útil. Mas é, no mínimo, intrigante que, no presente, outros presidentes do passado sejam poupados pela “entourage” actual. O Benfica já estava em plano inclinado quando Vale chegou. O Benfica partiu sempre com a vantagem de ter uma massa adepta ímpar no contexto nacional (e até internacional), chegou a ter o maior estádio do País (um erro resultante da típica megalomania portuguesa) e os melhores jogadores portugueses. O que não teve? Alguém que, ao longo dos tempos, percebesse que os resultados, no futebol, não dependem apenas de magistérios de influências mas também de profissionalismo. O Benfica desgastou-se muito a combater magistérios de influência que foram seus, nunca encontrou forma de combater Pinto da Costa (porque quis copiá-lo) e perdeu-se na voragem de fazer e desfazer plantéis a qualquer preço. O FC Porto soube criar condições para “dominar” a conjuntura mas teve a ciência de, no futebol, impor um regime de profissionalismo que, nos últimos anos, conheceu hiatos, mas nunca fracturas comprometedoras.

O Sporting de Paulo Bento poderá ser um conjunto mais equilibrado?
O Sporting não se assume, gere. Num campeonato macrocéfalo como o nosso, isso às vezes chega para criar uma ideia de força. O Sporting tem o conceito exacto do ponto de vista da detecção dos talentos. Mas falha a seguir, na pós-formação, não apenas por razões financeiras. Tal como no Benfica, há um paradigma de falta de exigência impressionante. Quanto aos plantéis: Benfica melhorou, mas tem uma factura pesada do passado a pagar (uma equipa nova não se constrói com três cantigas); Sporting melhorou, porque soube alterar a sua concepção de jogo, eliminando um conjunto de jogadores que não eram solução para nada; o FC Porto manteve o molde, roubou o melhor jogador ao Benfica (inacreditável!), mas tem algumas questões em aberto. O plantel é bom. Disse na apresentação do seu livro «Estádio de Choque» que «há muitas ilusões, enganos e mentiras à volta da indústria do futebol.

Há que trabalhar para erradicar a batotice». Este «nosso» futebol precisa de um tratamento de choque?
Já não acredito em tratamentos de choque, simplesmente porque não vejo pessoas capazes de os protagonizar. A fraca credibilidade do futebol em Portugal começa na fraca credibilidade do poder político. Essa osmose é catastrófica para o País. O ex-presidente do Sporting, Dias da Cunha, apontou o dedo a Pinto da Costa e a Valentim Loureiro, nomeando-os os «rostos do sistema».

Os processos “Apito Dourado” e “Apito Final” deitam por terra esta teoria ou tudo vai continuar como dantes?
Todos aqueles que se insurgiram contra os “donos da bola” ou estão na prateleira, na reforma ou foram pura e simplesmente exterminados. Há, também, os enganadores. Os falsos reformistas. Apregoam que são a favor da mudança quando apenas defendem o seu torrão. Os deuses-diabos da vida. É certo: avançou-se alguma coisa, mas não o suficiente. Ainda estamos entre o D. João VI e o D. Sebastião. E não nos livramos da herança fascista. Há para aí uns “grandes democratas” que são piores que os bastiões da ditadura. Portugal precisa de uma grande referência no aparelho de Estado. Sócrates tem alguma sede reformista, mas, na sua aparente firmeza, precisaria de não nos fazer lembrar Alves dos Reis. Na minha juventude, porque vivi o 25 de Abril numa fase crucial do meu crescimento, acreditava no socialismo moderado. Continuo a acreditar na defesa de causas, mas acho que o modelo partidário cavou a sua própria sepultura. Estou muito decepcionado com o PS e com o próprio Bloco Central. A esquerda e a direita barafustam, dizem algumas verdades, nesse sentido têm um papel útil, mas os portugueses não gostam de correr riscos. O País está bloqueado.

Escreveu num artigo no «CM» que existe um «Corrupção Futebol Clube». É essa convicção generalizada, que afasta os adeptos das bancadas ou há outros factores, como o preço dos bilhetes e a falta de qualidade dos espectáculos, que tira espectadores dos recintos?
O tráfico de influências é o maior problema do futebol português e, porventura, do País. A falta de clareza e de verdade nos discursos. A clubite assustadora. A falta de cultura desportiva e democrática. E, claro, o fraco nível da nossa Liga, os bilhetes caríssimos e a sensação de insegurança.

Foi jornalista de «A Bola» durante 26 anos. Hoje, critica fortemente a subserviência do jornalismo desportivo aos «três» grandes, ignorando o lado «negro» do futebol. De que interesses está «refém» a imprensa especializada?
A imprensa desportiva é um prolongamento do “aparelho clubístico”. Ao partir do princípio que não sobrevive sem ele, acumulou erros sobre erros e deitou-se por baixo dele, prostituindo-se. Há ainda uns assomos de independência e ainda há quem pense que é a crítica independente que afasta os leitores. Não é. É a falta de trabalho, a investigação, a aposta em jornalistas sem tempo suficiente para adquirirem experiência no terreno. É, também, a precariedade do emprego e, sobretudo, as chefias que são preenchidas por comissionistas da ideologia clubística. O problema de alguns jornalistas desportivos nem é sequer a questão muito badalada de nunca terem dado um pontapé na bola (o argumento, nem sempre verdadeiro, dos ignorantes); é a falta de cultura geral.

Segundo consta abandonou, por vontade própria, o seu jornal de sempre, «A Bola», alegadamente por os seus artigos terem sido «censurados» por dirigentes de um grande clube. É verdade?
Os meus detractores puseram a correr a infâmia segundo a qual teria sido “expulso” de «A Bola». Como se isso fosse possível! Era accionista, estava há 26 anos no jornal que me formou e ao qual dei toda a minha disponibilidade e afectividade, mas confirmo que já não me identificava com a “política de favores” que a Direcção do jornal começou a pôr em prática, ao contrário do desígnio dos fundadores e dos jornalistas de referência. «A Bola» deixou de ser a «Bíblia» quando o sucessor de Carlos Miranda passou a fazer todo o tipo de favores aos clubes e a pôr em causa a liberdade de expressão. Saí porque amo a liberdade, mas saí quando quis e como quis. «A Bola» continua viva na minha memória e não confundo dois ou três comissionistas com a história e os verdadeiros heróis do jornal. Lamento muito que o Arga e Lima tenha consentido o que consentiu. E a saída de Maria Margarida Ribeiro dos Reis diz tudo sobre a degradação que tomou conta do jornal. «A Bola» está hoje como o Benfica – conservou o nome (marca) e sobrevive à conta dele. Artificialmente.

Citando o prof. Moniz Pereira, existe uma «monocultura futebolística», desenvolvida pelos mass media, que abafa todos os outros desportos e até acontecimentos de relevo. Concorda?
Em absoluto. Teria propostas para contrariar essa situação, mas, hoje, longe das redacções, não tenho nada a ver com isso. Porque não vejo pessoas interessadas na mudança. Só quero escrever em liberdade. E escrever em liberdade pressupõe ter de suportar as pressões não apenas dos “homens do futebol” e da política mas também dos tais comissionistas (de serviço) da imprensa. Não é nada fácil.

Foi alvo de uma tentativa de agressão à saída da SIC, depois da sua participação no «Tempo Extra». Utilizando uma imagem da política, celebrizada por Jorge Coelho, pode-se dizer que quem se mete com os “donos da bola”, leva?
Vivemos num País cada vez mais perigoso. E de pessoas muito mal formadas. Quando fui agredido até puseram a correr o boato de que aquilo tinha sido uma encenação. Só eu sei o que passei e o que tive de fazer para garantir, de algum modo, a minha segurança e daqueles que me rodeiam. Choca-me que a mediocridade pessoal e profissional chegue a este ponto. O seu programa é dos mais vistos do canal por cabo de Carnaxide.

Analisando os moldes do «Tempo Extra» e de «As Escolhas de Marcelo», encontramos algumas semelhanças. Considera-se o prof. Marcelo Rebelo de Sousa do futebol?
Tenho alta consideração por Marcelo Rebelo de Sousa e acho-o de uma competência inquestionável. Infelizmente não o consigo ver nem ouvir como gostaria, por causa do meu trabalho. Penso que a admiração é mútua. Assumiu-se como um dos maiores críticos da gestão Madaíl/Scolari. Contudo, a selecção fica para a história, como vice-campeã de Europa e 4ª classificada no mundial.

Perante os factos, o novo seleccionador, Carlos Queiroz, recebe uma herança demasiado pesada?
Não concordei com o regresso de Carlos Queiroz à Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Penso que ele será o maior prejudicado. Calculo que os problemas com os quais se confrontou há quase 20 anos sejam praticamente os mesmos. Os tempos são outros, Queiroz está mais maduro, mas acabará por se sentir saturado de uma mentalidade que não muda. A porcaria é mais ou menos a mesma. Mas compreendo que, depois de tantos anos de emigração (forçada) sentisse vontade de regressar e fazer uma coisa que tanto gosta: treinar, escolher jogadores e apurar tácticas, ao mesmo tempo que olha para os problemas do futebol nacional. Irá perceber que o País não mudou e que mais valeria ter aguentado as nuvens negras e o frio de Manchester. E não terá o apoio que Scolari teve. Acompanhou durante muito tempo as camadas jovens do nosso futebol, nomeadamente na era Queiroz/Vingada.

A actual crise de títulos pode indiciar que o «viveiro» de grandes talentos, como Cristiano Ronaldo, Quaresma, Moutinho e Nani, entre outros, está em risco de se esgotar?
Sim. Porque ninguém se preocupou com a continuidade de um “programa de desenvolvimento” que assegurou durante cerca de 15 anos alguma credibilidade à Selecção Nacional. Queiroz criou a “geração de ouro” e os que lhe seguiram não tiveram capacidade para manter as rotinas e os métodos. Podemos cair, a prazo, no vazio. Scolari foi um dos maiores inimigos do desenvolvimento sustentado. Ajudou a demolir o “edifício das Selecções”, ao não evidenciar qualquer tipo de preocupação com as selecções mais jovens. Segundo várias organizações internacionais, o sistema de ensino português continua altamente deficitário em termos de resultados. A Educação está ao nível do futebol indígena, paupérrima e sem futuro?
Acredito na Escola como um complemento da Educação. Sem Educação a Escola é praticamente inútil. Ministério da Educação, professores, alunos e encarregados de educação, são os principais agentes de um sistema burocrático e, não raro, envolto em convulsões, como se viu recentemente com a contestação da classe docente.

Qual a receita para pôr estes protagonistas a remar para o mesmo lado?
Uma revolução cultural e de mentalidades. O foco deve ser colocado sobre os alunos na melhoria dos resultados daqueles que representam o futuro do País. Na coluna «Semiópticas» no «CM», efectua, frequentemente, incursões na análise política. Recentemente escreveu que «o sistema político protege os políticos e não as pessoas».

Para mudar este sistema é preciso mudar a cultura partidária instalada?
Já respondi: os partidos esgotaram-se na convicção de que o povo pode ser permanentemente manipulado. Não é assim. Há cada vez mais universitários nas caixas dos supermercados.