A BATALHA DE ORICO




Desde Geraldo Sem Pavor que Portugal - que ainda não o era quando este personagem começou a chatear o invasor árabe da Península Ibérica - tem dado ao mundo cromos carimbados. Para não ir diretamente ao assunto, posso ainda falar no profeta-sapateiro Bandarra, no poeta erótico-pornográfico Barbosa du Bocage e no convertido sulista e elitista João Malheiro. Estamos a falar no país que glorifica uma batalha, a de Ourique, que historicamente não está comprovada como um dos grandes momentos da reconquista fase-Afonso Henriques. E quem fala de Ourique fala de Orico. De Orico Santos. O irmão de Aprígio Santos, presidente da Naval 1.º de Maio, que esta semana cortou duas vezes o polegar esquerdo perante uma juíza que não lhe aceitava uma garantia bancária. Conforme se pode ler nos jornais de hoje, "não doeu nada".Os portugueses têm a obrigação de acreditar no Orico. Dói muito mais pagar a prestação da casa no fim do mês.Dói muito mais ver a Galp subir o preço da gasolina quando o barril do crude continua a descer a pique.Dói muito mais ver o Governo injectar dinheiro num banco que geria fortunas.Dói muito, mas mesmo muito, mais ver os nossos estádios com as bancadas vazias.O gesto heróico de Orico não é, ao contrário do que parece, um protesto contra o estado da justiça portuguesa. Interpreto-o apenas como a mais pura manifestação de uma espécie, O Tuga, que tem esta estranha capacidade para se revoltar das coisas pequenas e que nas grandes diz apenas "passo" ou então finge que está com sono e fecha o olho.Reparem. Os professores não protestam a qualidade do ensino - apenas não querem preencher papelada.Os alunos não querem melhores professores - apenas querem poder continuar a dispensar os professores, faltando às aulas.Os telespectadores não desejam bons programas - apenas aspiram a uma panaceia, em forma de novela, na digestão do jantar.Os políticos não lutam por um ideal - apenas aspiram tocar o poder.Os advogados não querem que se faça justiça - apenas desejam ganhar as respetivas causas e aumentar os respetivos honorários.Os banqueiros não querem o nosso dinheiro - apenas o querem usar.Os futebolistas beijam o emblema que lhes pagar melhor. Os treinadores desempregados só telefonam aos dirigentes dos clubes em dificuldades para se manterem ocupados. E os dirigentes dos clubes, acreditamos todos, fazem um tremendo sacríficio e acabam todos na miséria.Salvam-se os jornalistas. É a classe que conheço melhor, acreditem. Gente séria, honesta, incorruptível. Amigos dos seus amigos. Solidários até com a lesma da Sibéria. Disponíveis até quando estão a ressonar. É verdade que se deslocam de um local para o outro com a ajuda das rodinhas das cadeiras onde residem e que lamentam já não ser possível encher o teclado de cinza.(pausa, lembrei-me de fumar o meu cigarrito das 15.56)Estávamos nós postos neste sossego quando o cardeal patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, atirou uma acha para a fogueira ao aconselhar as moçoilas cristãs a pensarem duas vezes antes de casarem com um muçulmano. Não sei porque é que não fez o mesmo aviso aos rapazes cristãos que eventualmente se percam de amores por mouras encantadas. Nem quero saber. O que sei, isso sim, é que Policarpo deve estar a ser mais uma vítima dos nicotino-dependentes perseguidos. Fumador inveterado, o cardeal descaiu-se no final de uma longa tertúlia à porta fechada. Mais grave, uma tertúlia moderada pela Fátima Campos Ferreira. Não o vou colocar de imediato na galeria dos Cromos de Portugal porque Policarpo não merece. Mais a mais, não se bate num homem que usa saias. Só gostava de dizer que os portugueses continuam pouco atentos à sua história. Esquecem-se que tivemos por aqui os arábes e os berberes durante cinco séculos e que estes revelaram em regra grande tolerância religiosa, exigindo apenas um... pequeno imposto pela fé marginal.É aqui que volto ao nosso herói Orico, o agora novo pequeno polegar. Apenas para pedir ao seu irmão Aprígio o chapéu que este costuma usar. Tiro-o aqui a D. Orico. Não sei se tem origens moçárabes ou uma costela do famoso Geraldo. Sei apenas que vejo nele o português que, inesperadamente, chegou ao cume do Evereste sem apoios e oxigénio engarrafado, que dobrou o Cabo das Tormentas numa casca de noz e que ao ser o primeiro ocidental a chegar ao Japão começou logo a comer sushi. A propósito, o que terá sido feito dos dois bocadinhos de dedo do Orico?