EM RIO MAIOR, COM O FUTURO DO APITO


Ontem, sábado, participei numa acção de formação de 65 árbitros com idades compreendidas entre os 14 e os 18 anos, no centro de estágios de Rio Maior, numa iniciativa da APAF coordenada por Paulo Paraty e Cunha Antunes. Cada vez gosto mais de sentir este lado da arbitragem e a experiência vivida foi gratificante, sobretudo a conversa que tivemos com alguns dos miúdos após o módulo destinado a analisar o relação árbitro-comunicação social, que acabou por ir muito para além deste tema. Preparei um texto que li à plateia e penso que esta gostou, embora o período de perguntas e respostas que se seguiu tivesse sido bem mais interessante...embora polémico. O meu amigo João Pim Pim, de A BOLA, também ajudou à festa.


Começo com uma pergunta:
É o futebol uma guerra?
À primeira vista, pelo menos parece.
Vejamos:
No futebol há antagonistas.
Há estratégia.
Há ofensivas
Há artilheiros. Pontas-de-lança. Aríetes.
E quando um jogador remata, dispara um tiro.
A segunda pergunta que faço é:
As guerras têm árbitros?
Aparentemente, não.
Ou se perdem ou se ganham. Na antiguidade, as guerras eram terríveis, era o tempo em que valia tudo. Até arrancar olhos.
Mas o mundo, diz-se, evoluiu. As guerras modernas muitas vezes acabam empatadas e até têm observadores ditos neutros. Uma espécie de árbitro com um papel cada vez mais importante num tempo em que as guerras são transmitidas em directo e as emissões de televisão patrocinadas pelas grandes marcas. Chegará o dia em que teremos mesmo uma guerra com sponsor. Mas esse é outro assunto...
Também o futebol começou sem árbitros e hoje estes são considerados protagonistas do espectáculo a que também chamam indústria. Pier Luigi Collina, por exemplo, tornou-se mesmo um ícone da publicidade, mesmo quando é obrigado, hoje na qualidade de presidente do Conselho de Arbitragem italiano, a ter a segurança pessoal que raramente requisitou enquanto juiz de campo.
É certo. Os árbitros não têm a importância dos outros protagonistas do futebol – jogadores, técnicos e dirigentes – mas em termos de notoriedade pública atingiram há muito o ponto de não retorno. Quem gosta de futebol começa a conhecer aqueles que apitam e muitas vezes o árbitro acaba por ser a principal figura no lançamento de um grande jogo. Ou não será notícia o árbitro nomeado para a final do Campeonato do Mundo ou para o próximo Benfica-Sporting?
No tempo das grandes batalhas fraticidas, o árbitro provavelmente era o deus que estivesse mais à mão. Confiando cada uma das hostes no seu deus a sorte e o mérito do combate. Convenhamos, era uma arbitragem claramente tendenciosa, embora consagrada pelo divino.
O árbitro é o dono do livro das leis. Das 17 leis do futebol. Mais a 18.ª, a que chamam bom senso ou critério do árbitro. O árbitro sabe as leis do jogo mas os jogadores, os treinadores, os dirigentes e os adeptos nem sempre. Mas todos falam muito daquilo que desconhecem. Até os jornalistas. Ou sobretudo estes.
Num teste que uma vez orientei para candidatos a jornalistas num jornal desportivo, a primeira questão procurava saber quantas leis tem o futebol? Menos de metade dos candidatos, muitos deles com formação superior e todos adeptos do futebol, respondeu errado. Houve até quem dissesse tinha tantos artigos como a Constituição da nação ou tantos cantos como os Lusíadas de Camões, se bem que esta última resposta até teve alguma graça pois o pontapé de canto é uma dessas 17 leis, por acaso a últimas das leis. O que explica muitas vezes o facto de as próprias leis do jogo serem chutadas para canto por quem mais as devia respeitar: TODOS NÓS.
Mas, tal como se diz na abertura de um livro que vos recomendo, a Agenda do Árbitro, editada pelo Núcleo de Árbitros Francisco Guerra, “não basta saber de cor todas as leis do jogo, é preciso compreender o seu espírito para bem aplicá-las”. Aí também se diz que o árbitro caseiro “é o maior perigo e o maior inimigo do bom futebol”.
Ao que eu acrescento: o árbitro caseiro, o dirigente mal intencionado, o jogador maldoso, o treinador mal criado, o adepto estúpido e o jornalista enfeudado.
Ou seja, o perigo espreita sempre.
O perigo de cair na tentação é tremendo sobretudo para aqueles que não fazem uma formação contínua e uma reflexão permanente sobre tudo os que os rodeia.
Porque, que ninguém tenha dúvidas, muito pode ter mudado no futebol mas o desejo de VENCER continua a ser forte. NINGUÉM QUER PERDER. E muitos são os que querem ganhar NÃO IMPORTA COMO. Isto é, violando leis e consciências, quase num regresso aos primórdios da humanidade, ao tempo em que valia tudo até arrancar olhos.
O árbitro é, nesta guerra, sempre o elo mais fraco.
Porque nada tem a ganhar e tudo tem a perder.
Porque é a única equipa que não tem adeptos.
Porque de todos os protagonistas do futebol é o menos compensado.
Porque quando apita bem não é notícia e um simples erro pode fazer dele manchete.
Ser árbitro pode estar ao alcance de qualquer um.
Ser um bom árbitro, não.
O mais forte tem mesmo de ser aquele que é considerado o elo mais fraco.
Querem maior desafio do que este no mundo do futebol? Eu não conheço outro igual.
Abusando da vossa paciência, trago aqui também mais um livro que fala de futebol e dos árbitros. Não é um livro, é mais um tratado sobre o jogo da bola. O seu autor, Vítor Santos, foi o homem que fez de “A Bola” a bíblia do desporto português. Na obra “Futebol – Bancada de Imprensa”, o jornalista que era conhecido simplesmente por O CHEFE diz o seguinte sobre o árbitro:
“Proclame-se, antes de mais nada, que continuamos a pensar que, na grande república do desporto, a lei que confere aos árbitros plenos poderes é a mais saudável das leis – a que pode conduzir à justa apreensão da ideia do desporto e do espírito do jogo. Realmente, entre revistir de autoridade um juiz único (que pode humanamente errar mas erra per si sem influências estranhas) e a solução que limite e condicione esses poderes, não há que escolher. No ambiente de paixão, de sectarismo, de retaliação em que vive o futebol, destruir a autoridade do árbitro, talhá-la segundo a paixão e infalíveis interesses partidários, conduziria ao caos, à desordem, a uma baixa demagogia da bola, ao nível dos “off-sides”. Entenda-se, portanto, que o árbitro, figura única da justiça do jogo, é e será sempre uma eterna necessidade e uma eterna constante do futebol.”
Por tudo isto, nestas breves palavras de introdução, apenas vos quero dizer que admiro a vossa coragem de seguir por este caminho e que estou disponível para vos aplaudir quando, daqui a uns anos, o vosso nome constar do boletim de um jogo da I Divisão. Ou talvez da final do Campeonato do Mundo. Só então poderei dizer se aqui nasceram bons árbitros e não aberrações fenomenais, como aqui bem perto, no Entroncamento.
Acreditem que o futebol está cheio de ervas daninhas e de minas e armadilhas. Por isso, antes do mais confiem nos vossos mestres. Naqueles que amam a arbitragem fechados num bunker que todos querem atacar. À falta de melhor, lembrem-se sempre: os derrotados transformam o árbitro no inimigo que não conseguiram liquidar dentro das quatro linhas.
Muita força, pois, no longo e estupendo caminho que se abre à vossa frente. Não esperem aplausos. Não sintam os assobios. Sigam apenas na direcção de um futebol sério, limpo e justo.
Recordem-se que comecei com uma pergunta para a qual nunca quis encontrar resposta. Esta só pode ser dada por vós. Não resisto, porém, a uma última citação que vos pode dar uma ajuda. É do humorista brasileiro Millor Fernandes e reza assim:
- O dinheiro não é só facilmente dobrável como dobra facilmente qualquer um.
E se um dia tal acontecer, sempre podem dizer em vossa defesa, ainda citando o Millor:
- Roubava sim, mas só em legítima defesa.