PINTO DE SOUSA

Em Gondomar, durante o julgamento do processo originário
Há no país a tendência para relativizar o que aconteceu durante a longa noite fascista. As novas gerações começam mesmo a questionar se as coisas foram assim tão más como as pintam,
É que foram mesmo.

Mais que a brutalidade da Polícia Política, a tacanhez moral fez regredir a nação e a sociedade que arrastava.
Lembro só um episódio: foi longo o processo até Salazar permitir que as enfermeiras e as telefonistas tivessem direito ao casamento, porque se entendia que estas são profissões que põem em a estabilidade e a moral das famílias.

Com a quantidade de call-centers que temos hoje, o que não diria o velho Botas?
Algo de parecido, embora noutra dimensão, se passa com a arbitragem portuguesa. É com alguma facilidade que se conclui que nada evoluiu neste capítulo. O que é, no mínimo, um insulto à nossa inteligência.
A arbitragem portuguesa de hoje nada tem a ver com a arbitragem dos anos 70 e 80. Não vamos recuar mais no tempo porque seria apenas procurar as origens de um sistema poroso e sem verdade desportiva. Ou com pouca.

Os anos 90 do século passado representaram um salto evolutivo. Lento de início mas depois bastante pronunciado. Foi nesse período que se afirmaram árbitros como Jorge Coroado, Paulo Costa, Paulo Paraty e Vítor Pereira, juízes de campo na esteira do único nome que foi verdadeiramente uma referência nos anos anteriores: Carlos Valente. Para quem já se esqueceu, o árbitro da Moita esteve em dois Mundiais... E depois deles vieram Duarte Gomes, Pedro Proença, Artur Soares Dias, Jorge Sousa e outros árbitros de valor indiscutível.

Sei que o que vou escrever pode soar a heresia por estar em causa uma das principais figuras do Apito Dourado. Mas foi José António Pinto de Sousa o grande responsável pela regeneração da arbitragem portuguesa. Não apenas conseguiu para os árbitros condições dignas de trabalho - com estes a deixarem de pernoitar em pensões e de fazer viagens de comboio... - mas também foi ele quem apostou na qualidade, não ouvindo as dicas dos seus muitos amigos que pretendiam subir este ou descer aquele.

Os árbitros melhor que ninguém sabem reconhecer que foi Pinto da Sousa quem ousou dar aos árbitros uma carreira, tirando-os devagarinho dos maus caminhos. Por outras palavras, tornando os árbitros menos permeáveis, mais fortes e muito mais difíceis de manipular por aqueles que em público defendem a verdade desportiva mas que em privado apenas querem ganhar custe o que custar. Os hipócritas do costume.

Condenado em Gondomar e com um complexo processo por resolver na Boa-Hora, Pinto de Sousa está hoje também a pagar o idealismo e a independência que trouxe para a arbitragem. Os grandes amigos de ontem deixaram de aparecer (o que, vistas bem as coisas, até nem é mau) mas os árbitros, no activo ou não, continuam com ele.

O Senhor Arbitragem nada lucrou com a sua passagem pelo futebol. Mas muitos lucraram, ou pelo menos deram-no a entender, com a sua bonomia.

Confirma-se: há homens que nascem fora do tempo e há tempos que não merecem os homens que têm.
É o caso.