NÃO DIGAM QUE NÃO SE PASSA NADA



Vou escrever sobre nada.

Por exemplo, sobre o Benfica que jogou em Atenas.

Ou sobre o Sporting que levou baile do Barcelona.O Estrela da Amadora e o Boavista também podiam ser tema.

Ou a capacidade retórica de Gilberto Madaíl.

A inteligência táctica de Carlos Queiroz é outra possibilidade.

A intuição e a preparação de alguns comentadores e relatadores televisivos outra.

Também podia falar sobre a política de comunicação dos grandes clubes.

Sobre a sintaxe de Luís Filipe Vieira.

A lógica de Soares Franco.

A urbanidade de Pinto da Costa.

A clareza de Octávio Machado.


Mas será que o simples facto de se escrever sobre nada já faz com que se esteja a dizer qualquer coisa?Eureka! É esse mesmo o segredo do nosso futebolzinho: não urge qualquer substância, basta passar a imagem da mesma.Sei que isto soa a filosofia fácil e barata conectada com a velha alegoria da caverna mas acreditem que foi por mero acaso que se faz esta referência a um filósofo grego (Platão).Como pergunta a minha filha, de 8 anos, "se o Universo começou do nada quem foi que fez esse nada?" Costuma responder assim: "Filha, o Universo foi comprado feito no Ikea mas sem livro de instruções". Acho que isto se nota sobretudo no microcosmos do nosso futebol.Onde todos os dias abrimos um jornal e parece que tudo aconteceu.

Vai-se a ver e...nada.

Onde os dirigentes passam a imagem de grande seriedade e voluntarismo social.

Vai-se a ver e...nada.

Onde os jogadores dão beijinhos no emblema da camisola e juram morrer pelo clube.

Vai-se a ver...e vê-se o respectivo empresário a reclamar um aumento salarial sempre que o craque marca um golo.


Talvez um dos únicos momentos em que não se fala de nada.Para quem queria falar sobre nada parece que já consegui dizer alguma coisa. Confesso que não estou nos meus dias. Cheguei a casa às duas manhã depois de terminar o serviço uma hora antes a tremer de frio num estádio construído no meio de uma pedreira, onde não tive, durante quatro horas, possibilidade de tomar uma bebida quente ou sequer de me abrigar por momentos num espaço aquecido. Quando cheguei ao carro este estava coberto por uma película de gelo. Suspeito que eu também.Contei isto tudo a um amigo e sabem o que é que ele me disse?Pois.Isto mesmo:- Não se passa nada.Bem, pelos vistos passa-se qualquer coisa. A paciência de quem conseguiu chegar aqui, por exemplo, com a promessa de que nada lhe seria oferecido, com o mesmo estoicismo de um adepto que avança para um estádio fustigado pela chuva sabendo que terá de pagar 20 euros por um bilhete que lhe dará o direito a ver um jogo de futebol e a apanhar uma pneumonia ao mesmo tempo.Há coisas piores, é verdade.

Imaginem-se amarrados a uma cadeira a ver "O Dia Seguinte" ou o "Trio de Ataque".