VITÓRIAS NOSSAS, SALÁRIOS DELES


Nem de propósito:


«Após anos de abstinência futebolística, vi na RTP a final da Liga dos Campeões. Primeiro, como um exilado que regressa à terra natal, estranhei a mudança no estilo dos comentários. Antes, os jogos eram acompanhados por uma retórica vazia e despretensiosa. Agora, a retórica é vazia e de um pretensiosismo que roça a comédia: os "passes em profundidade" e os defesas que "sacudiam" foram substituídos por um nevoeiro denso e solene, que visa erguer o futebol a uma espécie de ciência e rebaixar o espectador a uma espécie de idiota. Mas o momento da noite (o jogo foi fraquinho) aconteceu quando o especialista de serviço notou que o treinador adjunto português do Manchester United instruía em português um jogador português que se preparava para entrar em campo. Extasiado, o especialista proclamou que ouvir a língua pátria naquele contexto era um óbvio sintoma da "importância do futebol nacional". Até aqui, nenhuma objecção. Só que o especialista não se conteve: "as pessoas têm de perceber isto!"A sério? Eu imagino sem dificuldade nem pessimismo um mundo em que as pessoas não percebessem a importância do futebol nacional e, sobretudo, não fossem intimadas, sob vagas ameaças, a percebê-la. Infelizmente, não passo da imaginação. Na prática, as pessoas percebem tudo, desde a imensa grandeza de Cristiano Ronaldo aos portentosos métodos de José Mourinho, que saiu do Chelsea vai para um ano e, segundo os peritos na matéria, ainda assim levou o clube à referida final (aparentemente, não levou o clube a perdê-la). O nosso futebol é mais que importante: é sobrenatural. Não espanta que o celebremos em regime permanente, e mediante um vigor que ninguém de boa-fé poderá questionar. A única questão é: o que ganhamos com as celebrações? Nada. Mas isso as pessoas não têm de perceber. Nem conseguem.»

Alberto Gonçalves, in "Dias Contados", no DN. Aqui a versão integral: