QUANDO LOBO ANTUNES QUIS TER MÃOS DE FERRO

Frederico Barrigana morreu ontem. Aqui o vemos ao lado de Artur Jorge, João Nunes Coelho, Carlos Daniel e Francisco Pinheiro na apresentação do imprescindível - apenas a precisar de um upgrade - "A Paixão do Povo". O guarda-redes que ficou conhecido por "Mãos de Ferro", depois de uma memorável exibição pela selecção portuguesa em terras francesas, nunca foi campeão pelo FC Porto, onde jogou 14 épocas, antes de sair para o Salgueiros, onde subiu de divisão. Era um daqueles guarda-redes "malucos" não apenas dentro do campo e que deixou obviamente a sua marca na história do futebol português. António Lobo Antunes até lhe dedicou uma crónica, que não resisto a reproduzir:
"De há quarenta anos para cá, com entusiasmo, fervor e admiração, vi jogar quase todos os grandes guarda-redes portugueses, do inesquecível Azevedo, "Hércules do Barreiro", a José Pereira, o "Pássaro Azul". Vi o gigantesco Ernesto, do Atlético, o terror dos extremos, vi Abraão, do Olhanense, vi Cesário, do Sporting de Braga, na tarde de glória, no pelado do Benfica, em que defendeu todos os remates de Palmeiro, Arsénio, Águas e Rogério, vi Capela, da Académica, e Sebastião, o loiro Nero do Estoril Praia, célebres pelos seus voos acrobáticos, vi o fantástico Aníbal, de poupa trabalhada a brilhantina, vi o caprichoso Carlos Gomes pontapear fotógrafos antes de se transferir para Espanha e de ameaçar o presidente do clube, quando não lhe pagavam, com a irónica frase 'no hay dinero no hay portero', acompanhei o Vital, do Lusitano de Évora, que sulcava a relva com o calcanhar pensativo da bota, para marcar o centro da baliza. E todavia, para meu desgosto e frustração, nunca assistiu a nenhum jogo do meu ídolo Frederico Barrigana, o 'Mãos de Ferro', keeper do FC Porto. No intuito de compensar tal desdita, recortava, embevecido, do jornal, os instantâneos que o mostravam a saltar com um avançado, apertando-lhe contra as partes o joelho dissuasor (porquê partes se não inteiras?), a fim de esfriar os impetos assassinos do adversário; admirava-lhe a calvície e o boné que a cobria numa exactidão de cápsula; coleccionava-lhe as entrevistas e escutava, boquiaberto, na telefonia do meu pai, de dedos em concha na orelha, os relatos de Artur Agostinho, que, aos domingos, às 3 da tarde, narrava em tom épico, as proezas do grande Frederico Barrigana num estádio a rebentar de público. Aos 12 anos, se eu não desejasse, com tanta paixão, tornar-me escritor, quereria ter sido o "Mãos de Ferro". Mas, claro, possuía o sentido das limitações suficiente para compreender que não se pode querer ser o grande Frederico Barrigana: é-se, por dom divino, perfeito como ele só, desde o início."