AVÔ VIRIATO


Morreu Viriato Mourão, aos 80 anos. É mais um que desaparece do "dream team" da "Gazeta dos Desportos", nos gloriosos anos 80 que vivemos na Rua Poço dos Negros. O Viriato era já um veterano, uma espécie de avô para nós, que nos garantia sempre uma página de futebol internacional. Por norma a última a fechar. O Viriato chegava à redacção a meio da tarde, lia a imprensa internacional, fazia os seus recortes e completava tudo com os telexes das agências (ainda não havia internet...). Aconteceu muitas vezes ainda ainda estar a aprimorar a sua página enquanto a gurizada improvisava jogos de ping-pong na redacção ou transformava as bancas em mesas de jantar. Raramente protestou e muitas vezes foi connosco para a noite. Jamais esquecerei uma delas, na sua "Luminosa", onde tinha a sua tertúlia. O Viriato morreu mas permanece nas minhas memórias e certamente também nas dos meus colegas João Bonzinho, Luís Graça, Mário Pereira, António Magalhães, José Meireles, Alexandra Tavares-Teles, Virgílio Neves (o maior!), Armando Santos e tantos outros que tiveram o privilégio de pertencer a uma redacção onde se trabalhava por amor à camisola e à arte.

Escreveu também o Paulo Querido:
Soube agora, por um inimaginável acaso, que Viriato Mourão morreu. A 31 de Julho, já passam alguns dias. Lamento não ter sabido antes. Fui a muito poucos funerais na vida, mas teria ido ao de Viriato Mourão.Viriato Mourão era um senhor. Viriato Mourão era um camarada. Um companheiro. Um dos jornalistas mais íntegros que conheci. Também um dos mais cultos e educados, nos vários sentidos das duas palavras.Há quatro referências na minha formação como jornalista. O Viriato é a primeira e a mais alta delas. Outros dois são dele discípulos e admiradores, o Daniel Reis, que pelo Expresso continua, e o João Querido Manha, que a profissão queimou e as redacções expulsaram cedo demais (o quarto, José Manuel Teixeira, o monstro de trabalho, não é deste campeonato).
Eu conheci o Viriato na Gazeta dos Desportos e trabalhei com ele ainda no Diário Popular. Anos intensos com a Calçada do Combro por centro de gravidade, da Poço dos Negros à Luz Soriano — ao Bairro Alto, à Lisboa, toda.A ironia da vida fez de mim chefe dele, um dia, no Desporto do Popular. Tentem chefiar quem muito admiram. Não fosse a extraordinária personalidade do Viriato e eu não teria sido capaz. Na verdade, só aceitei o cargo de editor (sucedi ao Paulo Luís de Castro, se bem me lembro…) depois de ter uma conversa sólida com o Viriato e ele me ter tranquilizado repetidamente.Inesquecíveis fechos de edição e ceias tardias já com o jornal do dia seguinte debaixo do braço, em casas de todos os tipos de fama, onde desse, onde houvesse um bife.O Viriato metia num chinelo as luminárias que eu, verdinho, reverenciava na profissão. Tratava-os com a finíssima ironia que nunca terei porque me falta a classe que o Viriato Mourão transpirava.Um companheirão.Quem quer arte, pague ao Mozart — era uma das frases, com variantes, do resistente Viriato, amante do belo canto e sonhador. Um boémio completo, vertical, único — do São Carlos à Pantera Cor de Rosa, topam? Com um sentido impecável do que é próprio: nunca o vi ser incorrecto, nunca o vi magoar ninguém nem, ao contrário de tantos outros, ter algum comportamento indigno da sua Dona Irene.Tenho inveja dos que com ele conviveram nos anos 90, já em A Bola, para onde colaborou décadas. Sempre senti saudades do seu olhar concentrado e divertido, sério quando era para ser sério e equilibrado quando outros descambavam.Não tinha um feitio fácil para os poderes, isso vos posso garantir. Conseguia ser um verdadeiro chato.Mas na hora da notícia, vinha o rigor.O Viriato não era só companheiro somente no sentido da camaradagem, era um profissional de enorme experiência, grande cuidado, e com aquela distância de eventos, homens, emblemas que caracteriza um jornalista e o distingue do enchouriçador de “conteúdos”, permitindo-lhe ver o que se quer ocultar ou simplesmente não está à vista.Impressionar o Viriato — só pela beleza. Podia ser uma jogada divinal de António Oliveira (o irmão do actual patrão de Imprensa) ou um golo de pantufas de Nené (ele viu muitos outros, limito-me aos elos comuns) ou uma soprano a exceder-se na pauta de Wolfgang Amadeus.Ou então pelo carácter e pelo humanismo, os privilégios dos sensíveis.A malta é enrabada e mal paga, mas diverte-se muito — era outra das frases com que conseguia aliviar um momento tenso das relações nem sempre fáceis com chefias e administrações. Sem por um segundo perder a posição.Diverte-te, Viriato (e, repara!, pela primeira vez fui capaz de te tratar por tu, porque também eu já tenho idade para certas coisas).
Nota no sitio do Sindicato dos JornalistasEvocação do João no seu novo espaço tipo blogue, do “tempo em que se podia aprender a ler nos jornais, como eu aprendi no Diário Popular dos anos 60, onde Viriato era chefe da redacção desportiva e Aurélio Márcio redactor - uma geração de jornalistas que sabia tratar a palavra e que não admitia a subserviência”